Por Edson Struminski (Du Bois)
Era o dia 21 de agosto de 1979 e o trem de passageiros descia chacoalhando pela estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá. Eu tinha 16 para 17 anos. Estava viajando no meio de um grupo que incluía minha irmã, minha prima e mais alguns amigos. Não conhecia aquela ferrovia e, até então, a Serra do Mar no Paraná era apenas uma imagem vista através da hermética janela do carro quando ia com meus pais até o litoral. Então, aquele passeio na ferrovia era pura novidade: o trem azul, a paisagem com suas cores e cheiros, o verde da serra, os túneis, as cachoeiras e o Marumbi, a principal montanha daquele trajeto.
Na pequena estação ferroviária do Marumbi o trem fez uma parada. Saltou um punhado de gente dos vagões e uma pequena aglomeração logo se formou. Vi algumas pessoas carregadas como se fossem subir ao Everest e que logo iriam estar bebendo e desmoronando em alguma barraca, montada na primeira clareira que achassem. Havia um punhado de andarilhos que iriam subir algumas das trilhas do lugar. Vislumbrei rapidamente alguém ostentando uma corda na mochila, mas nada de muito especial.
Como outros grupos, subimos aquela que era tida como a trilha principal, um trajeto horroroso na verdade. Íngreme, cheio de pedras soltas, correntes escorregadias, vegetação meio despencando pelo peso das pessoas que passavam antes. Apesar disso, como o tempo estava bom e o dia agradável, acabei andando rápido. Depois de algum tempo cheguei a me adiantar ao meu grupo, mas isto não chegou a ser um problema, pois havia muita gente nesta trilha, subindo e descendo. Logo passei mais um grupinho e outro e outro…
Não sei a que horas cheguei ao cume de uma montanha, o cume do tal “Marumbi”. Já existiam várias pessoas espalhadas lá por cima. Vi que era um belo cume, de onde avistava várias outras montanhas da serra, cidades ao longe, estradas. O visual era realmente surpreendente e até empolgante para um adolescente tímido. Dali a algo como meia hora apareceu o grupo onde estavam minha irmã e minha prima, que ficou animada para descer de corda com um grupo que me pareceu, naquele momento, apenas um bando de exibicionistas.
O pessoal ficou ali fazendo macaquices com a corda até a hora de descer. Lá embaixo, na estação de trem, ganhei um papel simples, mas bonito, comemorativo de um tal “Centenário da Conquista do Marumbi”, algo que para mim não fazia muito sentido. Até aquele momento eu sequer sabia que estava no meio de uma comemoração.
Dias depois recebi um telefonema de alguém daquele grupo que foi comigo ao Marumbi, que disse que iria acontecer uma reunião em um “clube de montanhismo”. Com isto, o mesmo grupinho de adolescentes que subiu o Marumbi acabou se encontrando em uma garagem no bairro Prado Velho em Curitiba para a tal reunião. Reconheci o pessoal exibicionista das cordas do Marumbi que, na verdade, tinha armado o cirquinho no cume da montanha com boa intenção, ou seja arrecadar gente para um curso básico de montanhismo, o que aparentemente deu certo no nosso caso. Saí de lá embarcado no tal curso, com a providência de comprar meu primeiro calçado de escalada, um grotesco tênis da marca Kichute e alguns apetrechos que me permitissem acampar, como uma mochila de lona, um saco de dormir forrado de algodão e outras bugigangas.
O tal curso básico, aconteceu no morro Anhangava, um morro da Serra do Mar próximo a Curitiba, que na época era cheio de pedreiras e horrivelmente queimado e pelo qual eu futuramente me apaixonaria a ponto de construir a minha casa. Naturalmente, o cursinho foi o mais tosco possível. Nós básicos, algumas vias fáceis, seguidas de “simulações de quedas” e aprendizado de umas duas “técnicas de rapel”. Não havia cadeirinha de escalada, então o encordamento era feito diretamente com a corda no corpo. A corda era de poliamida, comprada em casas de camioneiros. Praticamente só usávamos mosquetões de aço, pois os feitos com ligas leves eram desconhecidos, raros ou muito caros. Na falta da cadeirinha, o rapel também era feito “no couro”, a corda laçando o corpo todo, ou como suprema concessão, usavam-se cordeletes para fabricar uma cadeirinha para a descida, que permitia um rapel menos sofrido. Um pedaço de cano de alumínio era encaixado em algum mosquetão e usado para deslizar na corda. Este sistema (magnone) fazia com que o rapel se tornasse muito rápido e algumas mãos foram queimadas nesta brincadeira. A própria segurança do segundo da cordada também era feita assim. O fato é que esta tosqueira toda foi extremamente empolgante e me vi fisgado pelo vírus da escalada.
Também fazia parte do ritual deste curso básico o iniciante ganhar um apelido logo de cara. Uma frase dita pelo novato, um adereço de roupa, uma característica física, qualquer coisa, era suficiente para alguém ganhar uma alcunha. No meu caso tive sorte, ganhei um apelido em francês que seria quase uma premonição a respeito da minha futura profissão (Du Bois, que significa “da floresta” ou “da madeira”) e depois ouviria lendas sobre o surgimento deste apelido que nem sei se são verdadeiras.
Os alunos um pouco mais habilidosos ganhavam um tutor particular para avançar no mundo da escalada, o que significava aulas no Marumbi, em algumas das vias tradicionais (que em 1979 já eram um verdadeiro museu a céu aberto, mas altamente desafiadoras) e suprema glória, acompanhar algum dos tutores na abertura de alguma via nova em algum lugar.
Como aparentemente eu era um destes alunos habilidosos, apesar dos meus escassos 50 e poucos quilos e, apesar das galhofas (hoje chamaríamos de bulling), por conta da minha magreza, logo me vi bufando nas trilhas do Marumbi, dando segurança para alguém e batendo algum grampo ou rebite de forma tosca e arriscada em algum lugar da serra.
Eu não tinha muita noção naquele primeiro momento, mas o fato é que o montanhismo paranaense vivia, naqueles anos, um período de renascimento depois de uma longa e arrastada decadência e aqueles poucos novatos e mais alguns “veteranos”, apenas um pouco mais velhos que nós, representavam um esforço no sentido de modernizar o esporte no Paraná.
Na cidade onde morava na época (Curitiba), falar em montanhismo era o mesmo que falar em Marte, algo distante e sem maiores referências no mundo real. Rapidamente devorei as publicações disponíveis sobre escaladas ou montanhismo na Biblioteca Pública do Paraná, que incluía pérolas como história sobre a Via dos Austríacos (um artificial no Rio de Janeiro), publicada na falecida revista Manchete, alguma coisa primeiromundista sobre paraísos de escaladas norte americanos ou matérias de personagens que ainda refletiam no mundo alpino como o italiano Walter Bonatti, ou o andinista Domingos Giobbi (do Clube Alpino Paulista). Lembro-me de ter lido também uma matéria sobre um acidente espantoso que ainda assombrava a comunidade montanhista brasileira, a morte de uma escaladora (Marizel), asfixiada pelo tal encordoamento de corpo após uma queda na travessia dos Olhos do Imperador, na Pedra da Gávea, em 1975. Quanto aos livros, a publicação mais espetacular disponível era La montagne, um livro de 1956 de Maurice Herzog, um personagem que, na época, eu sequer imaginava a importância que tinha no montanhismo mundial.
Sem muita coisa para ler, com material escasso ou raro e poucas vias, o jeito era improvisar. Não só canos viravam aparelhos de rapel, como pedaços de antena de tv viravam estribos. Kichutes eram “envenenados” com sola de colarinho de pneu de caminhão para melhor a aderência e cadeirinhas eram feitas com cintos de segurança comprados em ferro velhos, um local, aliás, que era uma mina para a busca de materiais para “novos” equipamentos. A criatividade dos escaladores da época não tinha limites e esta carência deu origem às primeiras confecções e oficinas de montanhismo, algumas com marcas ainda hoje no mercado.
Este primeiro momento da minha vida de montanhista durou uns dois anos. Aprendizado, improvisações, passeios, ideias mirabolantes. Metade do tempo estávamos brincando, com coisas inacreditáveis como guerras de lama na montanha, enfim, algo que seria de se imaginar entre um bando de moleques, mas que, entre as brincadeiras, estavam descobrindo as montanhas, sem muitas regras ou parâmetros. Um bando de guris felizes soltos na Serra do Mar.
A minha fase seguinte na montanha seria igualmente fascinante: viveria o florescimento da escalada natural, mas isto é outra estória….
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