(Reflexões sobre a vida e sobre o fim dela)
Por Edson Struminski (Du Bois)
Borboletas sempre enchem meus olhos. Quando ando pelas montanhas ou florestas sempre encontro algumas em bando. Algumas vezes tem cores metálicas brilhantes, ou desenhos arrebatadores. São pequenos e belos animais, de tal modo que muita gente resiste a considerá-las como insetos, pois pouco lembram de formigas, escaravelhos ou vespas, seus parentes distantes e menos agradáveis.
Borboletas, todos sabem, tem uma vida fugaz, pelo menos aos nossos olhos, coisas de dias, segundo me consta. De qualquer modo, a duração de vida delas é apenas uma analogia sobre o que irei falar adiante. Pois a nossa vida diante da vida de um jequitibá (1.000, ou 2.000 anos) também se assemelha a vida de uma borboleta. Estamos, digamos, borboleteando na frente de uma árvore desta.
O fato é que a borboleta é muito associada com a juventude feminina, que é uma fase efêmera, geralmente bonita, em que as garotas “andam em bando”, por assim dizer, como borboletas. Muitas garotas, inclusive, usam adereços como brincos, prendedores de cabelo ou tiaras com formas de borboleta.
A voz do instinto
É um pouco estranho usar a vida breve da borboleta para falar de um acontecimento que me perturbou e preocupou muito (e, de certa forma, ainda perturba), mas talvez seja uma forma delicada de falar sobre assuntos tabus na nossa sociedade, como morte, suicídio, etc e também para me livrar do peso que estou sentindo.
O fato é que estava escalando em solitário em alguns dos setores que existem aqui no rio São Jorge, em Ponta Grossa. Lá pelas tantas, senti algo perturbador, senti que havia um risco eminente em algum lugar. Vocês podem chamar isto do nome que quiserem, mensagem do além, comunicação do anjo da guarda, eu chamo apenas de instinto.
O instinto havia me avisado de algo. Sob muitos aspectos o cânion daquele rio é tão ou mais perigoso que uma montanha: paredes altas, pedras úmidas, rio nervoso, pessoas bebendo, pessoas com roupas ou calçados inadequados a beira dos abismos, pessoas fazendo brincadeiras bestas e assim por diante.
Naquele dia em que eu estava no São Jorge tinha visto pouca gente, pela manhã apenas um casal no alto da pedra e foi só. De tarde fui escalar no setor embaixo do teto ao lado da cachoeira. Avistei um grupo barulhento acima de mim, depois desceram para passear embaixo, na hora em que eu estava indo embora.
Apareceu um conhecido no grupo, com quem eu fiquei conversando. O grupo veio voltando também. Todos alegres, barulhentos. Pararam em um lugar ensolarado. Bati fotos deles e depois subi em uma pedra fácil das proximidades, mas muito alta, para fotografar o grupo todo de um ângulo melhor, mas continuava sentindo algo estranho no ar, um sinal de perigo.
Uma das garotas resolveu subir na mesma pedra onde estava, o que não me agradou. Vi os esforços dela, dei uma orientada.
Com o canto dos olhos vi descendo um casal na direção à base da cachoeira, depois uma moça jovem e sozinha. Enquanto isto a garota conseguiu se arrastar para cima da pedra onde eu estava, com muito custo, o que não me deixou tranquilo, pois o lugar é muito alto para brincadeiras. A moça jovem que tinha ido até a cachoeira voltou para cima e o outro casal que eu tinha visto ficou lá embaixo, depois subiu também. Eu resolvi descer e ir até minha mochila, pois a sensação de coisa ruim iminente não cessou e queria estar perto do meu equipo se fosse necessário.
Convoquei um dos rapazes para dar assistência para a garota que queria descer da pedra, esperei até as coisas ganharem um rumo seguro e subi até o alto das pedras, onde a gente avista o salto. Afinal por que o instinto tinha me enganado?
A borboleta em cima da pedra
Lá em cima da pedra, a uns 10 passos do abismo estava sentada a tal moça jovem, que eu havia visto anteriormente, sozinha, fumando um cigarro e bebendo bem devagar uma cerveja. Olhei rapidamente para ela, era muito jovem e bonita, mas tinha um olhar muito angustiado. A visão dela me lembrava aquela clássica cena de cinema do condenado que pede um último cigarro, uma última cerveja. Isto me perturbou e me deixou incomodado.
O grupão de baixo subiu e ela ficou por ali, o que me preocupou mais ainda, pois algo na cena não combinava, além do que tinha o instinto…, borboletas não ficam sozinhas em cima das pedras.
Estava cansado do dia de escalada, mas acabei sentando para conversar e percebi muita revolta nas palavras daquela jovem. Revolta contra o mundo, por assim dizer, mas vi que ela era uma pessoa inteligente e tratei de conduzir a conversa por aí, explorando a inteligência dela e os aspectos da conversa para tentar entender o mundo dela, o motivo dela estar ali, naquele lugar que ela mesma admitia que causava medo nela.
Ela falou em solidão, um sentimento que eu associo mais a pessoas da minha idade e que sempre penso que não está muito associado a jovens da idade dela, a não ser que sejam muito desajustados. Pensei, na verdade, que fosse um briga de namorados e que ela estava curtindo uma distância necessária, mas parecia que existia algo mais duro que isto. Em alguns momentos as palavras dela se auto depreciavam, desvalorizando a própria vida, o que me assustou um pouco, considerando os tais 10 passos do abismo onde a gente se encontrava…
Estas palavras me alertaram para a necessidade de tentar recuperar um pouco da auto estima dela. Esta estratégia pareceu dar uma serenada no espírito daquela jovem.
A partir daí conversamos coisas um pouco mais amenas, falou que tinha 19 anos e recém tinha feito tirado a carteira de motorista, que estava fazendo cursinho, que já tinha ido ali ao São Jorge umas 10 vezes. Mas era uma conversa desconexa, fragmentada. Eu disse que estava escalando ali, ela disse que tinha medo de altura (mas estava sozinha em cima de uma pedra consideravelmente alta!). Fui conduzindo a conversa para temas neutros, filosóficos, pois a jovem não arredava pé daquele lugar perigoso e a cerveja dela continuava pela metade.
Estava vivendo uma situação paradoxal. Aquela moça não rejeitava minha presença, nem tampouco me estimulava a estar perto dela. Havia algo tênue que a mantinha ali, uma espécie de asas de borboleta se preparando para bater e voar. Mas eu me sentia na obrigação de esperar pacientemente, de fazer uma vigília naquele instante, como se fosse uma vigília pela vida dela.
Depois de um bom tempo, em uma destes momentos em que ela desconectou, eu aproveitei e vi que ela estava com frio, uma sensação bem humana e a convidei para ir até o estacionamento, um local sem vento e onde ainda tinha sol. Ela concordou, o que gerou um certo alívio em mim.
Depois que ela foi ao banheiro, o que também foi um sinal de uma necessidade bem humana, sentamos no sol e perguntei do motivo da tristeza que eu via nela. Foi somente aí que eu soube que a mãe dela tinha morrido há 3 semanas. Ela estava inconformada, me disse que a mãe poderia estar em qualquer lugar, até ali. Também me disse que trocaria a vida dela pela da mãe e coisas deste tipo, com muito revolta. Um duro ensinamento de amadurecimento.
A vida após a vida
Como uma espécie de retribuição pelo fato de ter sobrevivido a todas as escaladas que eu fiz, ao fato de ter passado ileso em locais incrivelmente perigosos nos últimos trinta e tantos anos e ter voltado para casa incólume quando deveria ter ficado para sempre na montanha, eu sinto que todo ano devo um pagamento na forma de salvar a vida de uma ou mais pessoas, algumas conhecidas, muitas desconhecidas. Todo ano isto acontece e estranhamente não tinha acontecido até agora, estava tranquilo e despreocupado, até o momento em que meu instinto começou a emitir sinais de alerta.
Minha mãe morreu nos meus braços a caminho do hospital, então disse algumas coisas para esta jovem, tinha algo a dizer sobre esta experiência humana que tínhamos em comum. Com isto ela parou para pensar um pouco, se acalmou. Depois levantou e disse que estava com fome, não tinha almoçado, o que para mim foi um bom sinal, pois se uma pessoa tem fome, frio, etc, é sinal que tem preocupações mundanas, ainda está ligada ao mundo. Imaginei que ela não ia querer voltar e tentar tomar um atalho para o fim das angústias dela, dar dez passos em direção a um abismo. Depois disto ela foi embora para a cidade.
Esta experiência foi muito perturbadora. Confesso que eu não estava preparado para esta situação, o que me deu certo embrulho no estômago depois, pois imaginei a situação do pai dela se recebesse mais uma notícia ruim.
Mais tarde refleti sobre a solidão de que ela havia falado. Da solidão que temos em nossas vidas. Da solidão que me abate às vezes. De como realmente é fácil e cômodo para nós não nos importarmos, abandonarmos as pessoas. Em cima da cachoeira tive de me manter ao lado desta jovem apenas por solidariedade, nem sequer por amizade, pois não chegamos a nos conhecer. Talvez ela não tivesse ainda cabeça para suportar a solidão de que falava e as consequências poderiam ter sido tristes. Uma vida breve de borboleta. “Às vezes é preciso ser apenas solidário”, pensei.