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Archive for março \20\+00:00 2009

O RIO PERFEITO

Por Edson Struminski (Du Bois)

 

Encontrei o rio Perfeito em uma destas memoráveis caminhadas pela Serra do Mar. Uma caminhada que encheria as páginas coloridas de qualquer publicação destas de aventura ou destes sites de montanha.

Vários dias navegando em meio a um verde intocado, sem qualquer outro meio de orientação que não fosse a intuição me levando por vales e cumes de montanhas que encontrava pelo caminho. Cada noite em uma montanha diferente.

Para fazer juz ao rio Perfeito, adotei um estilo honesto com a montanha. Meus instrumentos foram os mais singelos e despojados. Um tanto de comida e de roupa, um par de luvas e de polainas para proteção, um pequeno canivete para livrar-se dos cipós e bambus. Nada de facões para abrir trilhas, mapas, bússolas, GPS, ou qualquer traquitana moderna barulhenta ou cheia de botões. Uma rede e um toldo fazendo o lugar de casa no lugar da barraca. Nada de coisas sofisticadas. Pelo menos não desta vez.

A chegada neste lugar não foi feita sem obstáculos. Grandes vales e penhascos tiveram de ser  transpostos. Bambus de várias espécies tolhiam cada passo, alguns finos e resistentes como cipós, outros tão duros como madeira. Taquaras ocas quebravam-se ao menor toque e derrubavam uma água suspeita e desagradável sobre mim, outras ao contrário, eram tão resistentes que se tornavam muralhas que me obrigavam a longos e incertos desvios. Apareceram ainda alguns terríveis bambus cobertos de sílica que, cortantes como vidro, deixaram marcas por longo tempo no meu rosto. Era como ele me segurassem e dissessem, “volte, vá embora”. Nas encostas mais abruptas surgiram bambuzinhos pendurados em lugares inacreditáveis e assustadores e as caratuvas dominavam o topo das montanhas.

Haviam ainda árvores retorcidas, muito velhas, cheias de barbas de bode, algumas incrivelmente fortes, outras se desmanchando ao menor toque. Também cruzei com samambaias enormes, cheias de espinhos e ainda com bromélias tão grandes que poderiam engolir uma pessoa. Cada uma delas com folhas inacreditavelmente fortes e cortantes como espadas. Um batalhão delas postado invariavelmente em cada encosta, como um pelotão a proteger a entrada das montanhas. Cada uma parecendo esconder aquela assustadora cobra que finalmente se sentiria indignada por ter sido incomodada por mim e se vingaria da minha intromissão. Uma caminhada tão difícil que, se eu, mesmo assim, quissesse voltar, fugir, encontraria na retaguarda uma vegetação baixa e intrincada que apenas permitia a passagem à custa de muito esforço. “Porque eu fui me meter aqui”, ficava me perguntando.

É bem verdade e muitos sabem disso, que eu me sinto muito à vontade neste tipo de terreno. Mas não naquele momento. Eu me sentia oprimido, frágil, sozinho.

O que eu parecia ver era uma luta sem treguas. Um caos de vegetação sufocante disputando cada espaço de luz, cada centímetro de solo, cada gota de água caída do céu. Plantas lutando pela vida, plantas perdendo esta luta. Um caos de vida e de morte ao mesmo tempo. E eu lutando contra aquele caos o tempo todo, sem tréguas. Lutando contra as plantas, lutando contra mim mesmo.

 

Mas foi em meio a tudo isto, a todo este caos, a toda esta caminhada tão opressora, que me veio a surpresa do rio Perfeito.

Um lugar onde o tempo parecia haver parado. Uma estranha cápsula do tempo.

Um lugar que parecia fora do espaço, parecia um outro mundo, parecia que eu havia chegado a outro mundo. Como se fosse um estranho jardim budista mantido por algum monge invisível.

Não era um rio encachoeirado com pedras polidas e com aquela incrível quantidade de movimento como são geralmente os rios da nossa serra. Ali estranhamente a calma era a regra. Tudo era verde e tranquilo. Nada parecia fora do lugar. As pedras cobertas por um musgo espesso, um tapete vegetal que parecia velho como o tempo, aparentando a regência de uma profunda ordem ainda não perturbada.

Nas margens do rio Perfeito, no lugar da areia branca, ou dos sufocantes bambus, vicejava imperturbavelmente também uma delicada vegetação. Por cima uma exuberante floresta tropical escondia este cenário deslumbrante. Apenas a água, límpida e cristalina aparentava movimento, mas um movimento tão delicado que apenas reforçava a calma do lugar.

Existem muitos rios maravilhosos na Serra do Mar, mas para mim, este me pareceu um rio especial porque ali tudo parecia em seu lugar desde que a vegetação tomou conta daquele vale há uns 50 mil anos atrás, ou será, desde que o mundo é mundo?

Cada musgo cedendo lugar a outro musgo, uma samambaia morrendo e outra surgindo, árvores sucedendo a outras árvores. Uma troca constante para uma estabilidade permanente. As pedras tranquilas. Nada de movimentos bruscos ou de agressividade. Era como se aquelas pedras, aquele musgo, aquelas plantas estivessem assistindo nossos erros e acertos nos últimos milhares de anos e nos dissessem: “vejam, ainda estamos aqui”.

Haveria muito para dizer a respeito do rio Perfeito, mas isto não caberia em poucas linhas, pois as misteriosas sensações que ele me provocou são mais para serem vividas que lidas. Apenas pedi licença para entrar e, ao final, agradeci e saí.

Permaneci nele um tempo que me pareceu longo, mas que depois me pareceu apenas uma curta permanência. De qualquer modo me pareceu um tempo definitivo, como quando a gente escuta com atenção um solo de piano pela primeira vez, de um destes compositores definitivos como Chopin ou Beethoven. Na verdade devo ter perdido um pouco a noção do tempo.

Com isto prossegui minha caminhada. Mais vales e montanhas, mais bambus, samambaias e bromélias. Mas eu já era uma pessoa diferente. Depois desta estranha aventura, mais do que a água límpida para beber no caminho, levei um pouco da calma do rio Perfeito para beber na minha vida. Onde terá ficado o rio Perfeito? Será que ele só existiu na minha desesperada imaginação porque eu precisava dele naquele momento? Terá sido uma alucinação, em meio a uma dura jornada ou apenas uma metáfora de quanto a calma é importante em nossas vidas? Será que o rio Perfeito realmente existe?

Depois de alguns dias caminhando pelas montanhas atingi meu objetivo final, apenas para perceber que meu objetivo real, na verdade, tinha sido caminhar por aquelas montanhas, passar por aquele rio Perfeito.

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Por Edson Struminski (Du Bois)

A rapidez

Tem sido uma surpresa, para mim, encontrar nas páginas de um escritor como Ítalo Calvino inspiração para falar sobre temas de montanha. Em um livro em que apresentou propostas para o novo milênio (1) ele resolveu incluir o tema da rapidez como uma sugestão para levarmos em consideração .

É muito mais estranho falar da rapidez no mundo literário do que no mundo da montanha, pois no mundo físico isto é um tanto óbvio, parece mesmo uma característica da modernidade. Para nós, montanhistas, é fácil imaginarmos, por exemplo, a diferença entre cordadas rápidas e lentas. Mas assim como no caso da leveza, o tema que interessa para Ítalo Calvino e que diz respeito a nós montanhistas não é tanto a velocidade física, mas a relação entre a velocidade física e a velocidade mental. 

Para Calvino a rapidez não significa escrever ou ler rápido e sim acontecimentos se sucedendo rapidamente. É como aquilo que pode acontecer em uma escalada, acontecimentos rápidos em uma luta contra o tempo, contra os obstáculos que impedem ou retardam a realização de um desejo. Algo que faz muito sentido na montanha, onde inúmeras histórias de cordadas fazendo escaladas lentas, que parecem se arrastar, já nos dão a antevisão de fracassos ou de situações até mais trágicas, ao passo que cordadas rápidas sugerem habilidades insuspeitadas.

Segundo Calvino, a rapidez de pensamento quer dizer antes de tudo agilidade, mobilidade, desenvoltura, qualidades importantes física e mentalmente para qualquer escalador que almeje algo mais que meramente passar o tempo na montanha. Com isto Calvino não nega os prazeres do retardamento, da divagação ou da lentidão, como acontece na literatura e como poderíamos imaginar à primeira vista, mas opta pela velocidade mental, pelo valor dela por si mesma, pelo prazer que proporciona a aqueles que são sensíveis a esse prazer e menos pela utilidade prática disto, muito embora eu entenda que raciocínios rápidos tem sim, grande utilidade prática para um montanhista. De qualquer modo, para Calvino, um raciocínio rápido não é melhor do que um ponderado, mas comunica algo especial que está precisamente neste ligeireza. Algo que faz muito sentido no mundo moderno, em particular no mundo da montanha.

Isto porque para Calvino, na vida prática, principalmente nos dias atuais, o tempo é uma riqueza de que nos tornamos avaros, por isto a economia de tempo é uma coisa boa, porque quanto mais tempo economizamos, mais tempo poderemos gastar, por exemplo, no fim de uma escalada, no cume de uma montanha, vendo um por de sol ou arrumando um bivaque com mais tranqüilidade.

A rapidez se ajusta muito bem, então, quando estamos falando de escaladas longas, onde minutos se transformam em horas e horas em dias, com tudo o que isto implica na sucessão de acontecimentos, decisões, dramas, aventuras e glórias (ou derrotas). A literatura de montanha está repleta de situações em que identificamos claramente a lentidão ou a rapidez como um fator determinante para uma história tomar um rumo ou outro.

Como existe uma farta literatura em montanha, a rapidez com que os acontecimentos se sucedem é muito fácil de ser verificar, particularmente nos relatos atuais dos escaladores. Mas tomemos uma história clássica, a primeira ascensão do Fitz Roy por uma brilhante expedição de franceses nos já distantes anos 1950 (2). Há uma sucessão incrivelmente veloz de acontecimentos entre a preparação da expedição, sua viagem, a inesperada e rápida morte de um dos componentes, a aproximação da montanha, a ascensão da parede por dois membros da equipe, a volta do grupo a Buenos Aires, a ida ao Aconcágua para mais uma ascensão e finalmente o retorno à França, Não por acaso o símbolo desta agilidade é aparentemente mais mecânico do que humano. Mais do que mulas, lentos caminhões em estradas impraticáveis ou longas aproximações, é em especial o avião, que neste período logo posterior à segunda Guerra Mundial havia se transformado em uma máquina confiável e segura para transporte de passageiros e de cargas, que podemos perceber uma mudança respeitável de como as expedições se tornariam rápidas a partir de então.

Mas a velocidade das máquinas, se pontua, define e facilita o deslocamento do grupo, apenas reforça a percepção e agilidade mental destes escaladores, conforme vocês podem ler em um trecho em anexo*. É a rápida tomada de decisões, mesmo diante de tragédias e a atividade incessante e coordenada, frente às longas e inevitáveis demoras na escalada ou às enervantes esperas causadas pelo mal tempo que sugere, afinal, escaladas feitas com notável rapidez, lembrando sempre que estamos falando dos anos 1950.

Isto se tornaria lugar comum a partir de então. Os novos equipamentos de escalada simplesmente acrescentariam mais rapidez ao “fazer” da escalada (um friend se torna mais rápido de colocar que um grampo fixo), mas não necessariamente rapidez à escalada. Esta última continuará dependendo sempre da agilidade física e da rápida tomada de decisões do montanhista, responsável pela velocidade na sucessão de acontecimentos, que é o como Calvino definiu a rapidez.

Também é na velocidade mental que os relatos das escaladas (que afinal de contas acabam virando literatura) se diferenciariam e não na sua velocidade de divulgação. Calvino nos alerta que em uma época em que mídias como a internet permitem uma velocidade espantosa e um alcance extraordinário, elas arriscam reduzir toda comunicação a uma crosta uniforme e homogênea (basta ver o vazio de ideias e os lugares comuns dos sites e blogs dos montanhistas). A função de quem escreve, no entender dele, é a comunicação entre o que é diverso pelo fato de ser diverso, não embotando, mas exaltando a diferença, segundo a vocação própria da palavra escrita. Nos tempos atuais a velocidade da mídia deverá estar, então, não a serviço de mesmices e sim a favor desta velocidade mental.

Leia mais em:

(1) CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

(2) DEPASSE. L. Al asalto del Fitz Roy. Buenos Aires, Ediciones Peuser, 1954.

*“Bruscamente, por primera vez, me doy cuenta de los lejos que estoy de Francia, en este avión, que a toda velocidad, se dirige siempre al sur del hemisferio austral. Muy lejos, asimismo, de Buenos Aires, porque estas playas, estas focas, estos pingüinos, no evocam en lo más mínimo la rica provincia, com sus cultivos y sus islas casi tropicales del Tigre, que hemos dejado atrás esta mañana. Estas playas parecem, más bien, anticipos de la Antártida que más Allá de Tierra del Fuego, extiende sus hielos caóticos y desolados donde resurgen altos picos, posible prologamiento de la Cordillera”.

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Por Edson Struminski
Ignoro se o escritor italiano Ítalo Calvino foi montanhista. Mas em junho de 1984, ele foi convidado a fazer um ciclo de palestras na Universidade de Harvard, Estados Unidos (1). Ele criou aquela apresentação com base em valores literários que achava que mereciam ser preservados. Estou tomando a liberdade de tomá-los como valores do mundo da montanha que também acho que merecem ser preservados. Espero que apreciem a leitura.

A leveza

A leveza, em favor da qual argumenta Calvino, não se refere apenas ao peso corporal, embora ele sugira que isto também seja importante (inclusive acho que o é para nós montanhistas). A leveza de que ele nos fala é principalmente a das ideias. Calvino nos conta que no início do seu labor de escritor defrontou-se com o pesadume, a inércia e a opacidade do mundo, qualidades que logo se aderem à escrita como carrapatos, quando não encontramos um meio de fugir delas. Um peso que encontramos em muitos textos escritos por montanhistas, em muitas ações de montanhistas, em nós mesmos.
Ele cita também um outro escritor, Milan Kundera, que em um romance famoso (A insustentável leveza do ser), mostra exatamente o mundo oposto sugerido pelo nome do livro: o peso da vida está em toda forma de opressão social, constrições públicas e privadas, regras, normas, que aprisionam cada existência em suas malhas cada vez mais cerradas. Enfim, o mundo formal, do qual as pessoas não sabem como sair ou se sentem pesadas ou inseguras (como em Kafka) em ao menos tentar sair. O romance de Kundera mostra como na vida, tudo aquilo que escolhemos e apreciamos pela leveza acaba se revelando de um peso insustentável. Será este o caso do montanhismo para muitas pessoas? Das suas instituições, obrigações, regras, competições e demonstrações de força tão densas, que tornam ao final, o esporte um peso? Isto explicaria porque muitos desistem no meio do caminho? Por não suportarem as exigências sociais ou formais do esporte? As estranhas cobranças que surgem no meio do caminho?
Calvino cita uma história que ilustra a oposição entre a leveza e o peso, ambos em posições pouco aparentes à primeira vista. Ele extrai dos episódios do Decamerão, de Boccaccio, uma cena em que um poeta passeia distraído e tranquilo entre túmulos de mármore de um cemitério e é quase atropelado por um barulhento grupo de jovens cavaleiros que faz uma correria com seus cavalos apenas para troçar dele. A resposta do poeta aos cavaleiros é interessante, porém mais interessante é a cena de leveza seguinte. O poeta simplesmente se apoia em um dos altos túmulos e “levíssimo que era, deu um salto arrojando-se para o lado e, desembaraçando-se deles, lá se foi”, deixando os cavaleiros atônitos e desconfortáveis no cemitério.
Para Calvino, esta leveza do poeta, que ele associa, como eu no montanhismo, com a precisão e com a determinação, mas nunca com o que é vago e aleatório (é preciso ser leve como um pássaro e não como a pluma) e que por isto exige disciplina e autodeterminação, contrasta com a leveza da frivolidade, pois a leveza do pensamento pode fazer a frivolidade parecer pesada e opaca, como no caso dos cavaleiros, ou então, das pessoas que andam sem objetivos, em correrias barulhentas pelas montanhas.
Com isto, Calvino finaliza de forma magistral este episódio comentando que se fosse escolher um símbolo para o novo milênio escolheria este: o salto ágil e imprevisto deste poeta-filófoso que detém o segredo da leveza, enquanto que aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, espezinhadora e estrondosa, pertence ao reino da morte (pelo menos no mundo das ideias), como um cemitério de automóveis enferrujados ou coisa que o valha.
E neste ponto da leitura de Calvino, a imagem que me veio à cabeça foi a estranha percepção que me surge toda a vez que eu me defronto com um destes ambientes artificiais de escalada: muros, academias, campeonatos, no qual a densidade da estrutura parece se somar ao insustentável peso do esforço das pessoas em domar as dificuldades destas estruturas, em lutar contra elas. Em contraposição a isto, lembro-me da agradável sensação de descoberta que os muros e praças de cidades como Curitiba sempre proporcionam a quem faz esta releitura das cidades, a leveza de quem quer treinar por estes caminhos. Sem contar, é claro, a óbvia e inestimável sensação de leveza que podemos sentir ao andar em uma montanha de verdade.
Mas vejam, isto é uma percepção. Assim como para Calvino, a leveza é apenas uma opção para mim, não é necessariamente o contrário do peso, pois a densidade do pensamento pode ser igualmente muito boa. Também não faço uma condenação ao peso que percebo, por exemplo, no mundo da escalada em muros artificiais como citei acima. Chamo a atenção a uma palavra que eu usei ali acima: percepção. Tenho uma percepção de “algo pesado” no ambiente dos muros artificiais, que começa mas vai além mesmo das suas estruturas pesadas. Será que a percepção que eu tenho dos muros artificiais estará relacionada às suas obrigações inconfessáveis, regras e competições a que seus freqüentadores estão submetidos? Coisas que vemos em todos os grupos sociais onde a aparência conta mais que a profundidade.
Parodiando agora este escritor, os montanhistas deveriam passar este novo milênio nas montanhas sem esperar encontrar nelas nada além do que forem capazes de levar (em suas mochilas ou cabeças). A leveza, por exemplo, cujas virtudes Calvino tão bem soube ilustrar em seu texto.

Mais de Calvino:

(1) CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.

Dolce e chiara è la notte e senza vento,
E queta sovra i tetti e in mezzo agli orti
Posa la luna e di lontam rivela
Serena ogni montangna.

Doce e clara é a noite e não há vento
E calma sobre os tetos e entre os hortos
Repousa a lua, ao longe revelando
Serenas as montanhas.

Giacomo Leopardi

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Efeito pêndulo

Até que ponto a deselegância crônica no montanhismo paranaense está prejudicando sua evolução?

Por Edson Struminski (Du Bois)

Depois de alguns dias escalando em diferentes lugares de Santa Catarina, é com uma espécie de prazer renovado que volto a subir as pedrinhas do nosso Anhangava, aqui no quintal da minha casa.

Andar pelo Anhangava em um fim de semana é um pouco como participar destes programas de auditório da televisão, estilo Domingão do Faustão ou Silvio Santos. Aparece todo tipo de gente: farofeiros em grupos alegres e barulhentos, crianças, idosos. Gente super equipada para fazer big wall, rapazes grandalhões se pendurando em lugares inimagináveis, meninas bonitinhas enfeitando bases de vias e até mesmo escalando algumas paredes sem muita habilidade. Ao mesmo tempo cruzo também com garotas e garotos fortes malhando de verdade e evoluindo na pedra. Há gente preguiçosa, agitada, empenhada. Gente querendo aparecer, gente desaparecida. Videocassetadas. Eu posso cruzar, em um mesmo dia, com algumas das melhores ou das piores pessoas que eu já conheci nas últimas três décadas. Enfim, mesmo depois de tantos anos, o Anhangava é um lugar que tem um repertório aberto para qualquer um adquirir novos conceitos ou preconceitos.

É um fim de semana em que faço também um pouco de tudo. Escalo com Sato, um de meus parceiros mais frequentes, escalo em solitário, com corda de cima ou de baixo, escalo com uma turminha simpática que me oferece a ponta da corda em uma das fissuras do morro, faço boulder, solo algumas vias. Escalo sozinho em alguns lugares absolutamente calmos, depois passo para outros onde há um monte de gente falando. Escalo em pedra seca ou molhada. Alterno momentos de concentração máxima com descontração total. Enfim, acabo aproveitando coisas das mais diversas do Anhangava.

Uma moça chama a minha atenção. É uma pessoa que eu conheço já de algum tempo. É uma pessoa correta, trabalhadora e batalhadora, que sei que já passou por muitas dificuldade na vida e certamente não é nada filhinha do papai, pois eu sei que ela ganhou pouca coisa de graça na vida. Enfim, é uma pessoa madura e uma boa amiga. Particularmente é uma destas pessoas que não precisa de cordas, capacetes ou mosquetões coloridos para dizer que é uma montanhista de verdade, pois para ela, assim como para mim, montanhismo é uma filosofia de vida aprendida no convívio diário com este ambiente.

Não é de hoje que eu vejo ela correndo atrás de questões ambientais, ou outras igualmente dignas, destas que somente se empenha quem tem paciência e enxerga à frente dos fatos. Com esta grata amiga, a Dedé, tive uma conversa muito prazerosa, a ponto dela não se furtar a comentar, na lista da FEPAM, o que ela viu de bom surgindo no Anhangava durante um ano em que ela está morando longe daqui.

Ela lançou alguns elogios sobre coisas que ela enxerga como meu trabalho no email para a lista desta federação, coisas que na verdade são como filhos que se orienta, pois já andam sozinhos, que você sabe que crescem todo dia, mas que até pela proximidade, você enxerga os detalhes, mas não vê o todo. São coisas que hoje achamos banais, mas que deram muito trabalho para conseguir, como uma trilha gradativamente melhor e mais bem conservada, platôs e bases de vias estáveis, menos lixo na montanha, árvores vivas crescendo no lugar de tocos queimados ou mesmo o trabalho de formiguinha de conter bambus e samambaias que sempre são um convite para um novo incêndio. Enfim, trabalhos de muitas pessoas, embora eu tenha um prazer particular em executá-los ou orientá-los.

Mas ela também me lembrou das enfadonhas e vazias reuniões “de planejamento” que tivemos que suportar, da incontável papelada protocolada tentando evitar que algum projeto aloprado ou ostensivamente estúpido e degradante acontecesse nas montanhas (e que inevitavelmente nos custou a animosidade de gente defensora destes projetos) dos inevitáveis “chás de cadeira” que tomamos em orgãos públicos e também da incompreensão ou indiferença de muitos autoproclamados “montanhistas”.

Lembramos ainda de alguns de nossos fracassos ou dos erros que inevitavelmente, como humanos apaixonados pela montanha, cometemos ao longo do percurso. Erros estes sempre rapidamente apontados por uma certa parcela de gente pequena, muitos ligados ao mundo da montanha, que sempre veem aí a chance de tentar crescer um pouco tentando diminuir quem faz algo de bom.

Um outro amigo, o Sassá, com quem já escalei um punhadinho e também já fiz outras tantas coisas boas em montanhas, definiu este nosso papel militante como o de pioneiros, que a imagem clássica nos remete a alguém que “abre os caminhos para os demais”, o que se aplicaria, no meu caso, a estes cuidados ambientais com a montanha, a ciência na montanha, à abertura de novas vias de escalada, etc e, consequentemente, aos erros e acertos correspondentes.

O caso é que, tirando este lado do pioneirismo, o elogio que Dedé fez a mim é extensivo a qualquer pessoa que dedique um mínimo de amor à montanha. No meu caso e no dela também penso que isto é totalmente verdadeiro. Amor à natureza em geral e à montanha em particular é um sentimento que eu compartilho com esta amiga e que, embora isto pareça contraditório, foi justamente este amor e este apreço pelo pioneirismo que me afastou das instituições de montanhismo (clubes, associações, ginásios) e de grande parte das pessoas que frequentam estas instituições, mesmo hoje, pelo fato paradoxal de, ao longo dos anos, eu sentir muito pouco amor e generosidade nestas instituições para com a montanha e muito culto ao individualismo, como se a montanha fosse apenas uma tábua de exercício para inflacionar egos através da elevação da graduação da vias ou da superação de algum obstáculo momentâneo, ou mesmo servisse somente para ostentação de um vazio título de diretor/chefe/presidente/guru mor de alguma instituição montanheira. Enfim, aquele individualismo vazio, que transforma a montanha em um mundinho besta.

Mas antes que vocês leitores caiam na armadilha fácil de que estará lendo um “lá vem mais uma corrosiva crítica do malvado Du Bois aos clubes de montanhismo”, é preciso que reflitam sobre um fato histórico.

Com o passar dos anos e acompanhando alguns outros personagens emblemáticos do montanhismo percebi que também aconteceu algo semelhante com eles, este afastamento. Percebi que isto não é apenas uma particularidade minha. Alguns das pessoas mais importantes do montanhismo se afastaram das instituições organizadas (e isto não só no Paraná). Por que isto ocorreu?

Mas então e isto é importante, eu gostaria de prosseguir escrevendo agora este artigo não como uma crítica em particular, embora às vezes cite episódios particulares a título de esclarecimento. Este é um artigo bastante reflexivo e amplo e é importante que vocês pensem sobre o que vão ler agora e comentem, é claro, mas sem deselegâncias ou falsos moralismos, pois são truques baratos e vulgares que já usaram sem muito proveito no meu blog e eu não costumo subestimar a inteligência dos meus leitores. A intenção deste artigo é promover a evolução e não destruir instituições. Entretanto eu defendo a quebra de alguns dogmas que ainda existem no montanhismo paranaense em particular, mas que podem existir em outros estados.

Cito um episódio simbólico recente. Há alguns meses atrás algumas moças de um clube de montanhismo incomodadas com as críticas que eu fiz sobre questões de segurança em montanha, publicado neste blog compuseram (?) e cantaram para mim uma musiquinha, cuja letra falava de como eu incomodo as pessoas.

A palavra incomodar pode ter aí duas conotações. Uma é positiva, tirar-nos do comodismo e fazer com que avancemos, que haja progresso. A segunda é negativa, trazer desconforto e mal estar e induzir as pessoas à fuga ou estagnação. Pelas discussões geradas pelo meu artigo, pude perceber que o incômodo a que a música das garotas se referia dizia respeito a esta segunda conotação.

Tirando aspectos pessoais e particularidades, posteriormente eu soube que infelizmente outros parceiros de montanha, gente com currículo respeitável em montanha, ou mesmo pessoas de boa fé também sofreram com comportamentos deselegantes, como este protagonizado pelas meninas, ainda que com variações (não foram compostas musiquinhas e sim feitas condenações, ou depreciações por exemplo). E isto há não muito tempo. Relacionando isto depois a episódios ocorridos no passado, percebi então que estas cenas são mais comuns do que pensamos, são recorrentes, representam um dogma.

E é aí que eu os convido a uma reflexão, pois chegamos a um ponto chave. Quando algumas garotas tem um comportamento deselegante com alguém que escala há mais tempo do que elas tem de vida, o que isto significa? Apenas mulheres com momentâneo comportamento bobo e passageiro de adolescentes ou algo mais? Quando um montanhista veterano apresenta seu conhecimento para um público e recebe de troco deselegância o que isto significa? Apenas um público invejoso e bobo ou algo mais? Quando alguma pessoa apresenta alguma declaração que defende as montanhas, mas contraria a política momentânea de clubes e federações e com isto sofre uma repreensão deselegante (*), o que isto significa?

Penso que o dogma da deselegância reflete um estranho conservadorismo que se produz e reproduz nestas instituições como bactérias e que contamina pessoas jovens e aparentemente saudáveis que circulam por elas, algumas postadas até mesmo nas cabeças destas organizações de montanha e que culmina em cenas cíclicas e deselegantes de mau gosto, que não engrandecem quem protagoniza as cenas e que tentam diminuir quem é vítima. Isto existe ou é imaginação minha?

Neste momento creio que vocês podem começar a me apedrejar se quiserem, mas reflitam antes e não se esqueçam dos respectivos e inumeráveis telhados de vidro frágil e transparente existentes.

Entender o dogma e seus reflexos me parece vital para a sobrevivência do montanhismo, em particular no Paraná, embora isto certamente não deva ser exclusividade daqui. Note-se que existe aí um limiar entre uma evolução criativa com um certa dose saudável de dialética ou a cristalização da estagnação mental em uma doutrina que condena todo o esforço criativo independente (o montanhismo é um campo em que o grau de dificuldade das escaladas pode até ser eventualmente ampliado, pois depende do esforço individual e não dos grupos, mas isto não necessariamente representa uma evolução socializada).

Para ultrapassar este limiar da psicologia coletiva bichada é possível que alguém tenha que mergulhar na antropologia ou estudar algum destes sociólogos que falam de abstrações como “transmissão do poder simbólico” (Pierre Bourdieu). Sugiro que vocês deem uma buscada por aí, mas principalmente discutam sobre isto, conheçam mais a si mesmos e a própria história do montanhismo que vocês estão reproduzindo, a banda podre que vocês estão reproduzindo. É bem possível que o montanhismo paranaense, em particular, comece a mostrar uma faceta desconhecida para vocês. É possível que vocês arejem o montanhismo do Paraná, ou até mesmo que o montanhismo como um todo ganhe com isto.

A forma como estou terminando este artigo está insatisfatória? Concordo. Como eu comentei anteriormente, este artigo teve por objetivo apenas provocar a reflexão e não trazer as respostas prontas, saídas do forno do lap top, pois isto seria facilitar demais as coisas e este é um papel que eu, distinguido há muito como “incomodador honorário”, “persona non grata”, ou “enfant terrible”, entre outros nomes, não me disponho mais a fazer. Incluso, se alguns de vocês leitores se sentiram pessoalmente atingidos pelas minhas observações, ótimo, é sinal que o artigo atingiu seu objetivo e de que vocês devem começar esta reflexão, isto porque entendo que é importante quebrar tabus e barreiras, mas é importante que não sejam apenas alguns poucos e isolados pioneiros a fazer sempre o serviço pesado. Todos tem a obrigação de melhorar, é da natureza humana. O pêndulo da ruindade impulsionado por vocês até vai longe, mas volta, então é preciso mudar isto. 

 (*)o episódio referente a este exemplo foi documentado na lista da FEPAM durante discussões sobre o papel do estado (bombeiros) no combate ao incêndio do morro Pedra Branca (P.E.Pico do Paraná), no qual uma montanhista que participou dos combates foi repreendida pela diretoria da FEPAM por enviar um email independente à ouvidoria estadual reclamando do descaso estatal no combate ao fogo.

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Mundo da fantasia

Um novo setor de escaladas em xisto

Por Edson Struminski (Du Bois)

A região de São Luis do Purunã, a 40 km de Curitiba, bastante conhecida pelos excelentes setores de escalada em arenito, proporciona mais possibilidades do que é possível imaginar à primeira vista. Uma destas possibilidades é a da escalada em xisto, uma rocha metamórfica como o arenito, cuja textura lembra a da argila endurecida pela pressão.

Comecei a explorar o potencial de escalada em xisto há cerca de uns quatro anos.  Em uma investida na região descobri uma pedreira, no município de Balsa Nova, com este tipo de rocha, que foi abandonada após a exploração topar com o lençol freático, o que levou ao surgimento de um lago. Como nunca se sabe se este tipo de pedreira pode voltar a ser explorada novamente, resolvi contar um pouco das minhas experiências nela. Quem sabe outros escaladores se animem a provar as agarras deste local.

A bem da verdade esta pedreira já tinha sido explorada por escaladores antes. Alguns poucos grampos colocados na vasta parede ali existente testemunhavam tentativas anteriores. Porém, ficou claro para mim que estas tentativas não foram muito adiante. O ambiente em si não é muito “amigável”, pois para as escaladas abertas de baixo para cima visivelmente o risco é grande e constante, tanto para o guia quanto para o segundo, tendo em vista a enorme quantidade de pedras soltas na parede. 

Além disso, de modo geral pedreiras abandonadas são áreas degradadas e instáveis e esta não é exceção. Depois de desmatada, esta pedreira foi invadida por Pinus, uma árvore exótica no Brasil usada para reflorestamentos e por espécies nativas ruderais, típicas de áreas alteradas, como gramíneas. Este monte de plantas exóticas, o lago, mais um incomum depósito de pedras soltas na base, em parte sem cobertura de solo vegetal, dão a quem escala em um ambiente desta pedreira, uma estranha sensação fantasiosa de que se está escalando em um remoto local da cordilheira dos Andes, que possui exatamente este tipo de fisionomia da  paisagem, muito embora a escalada por ali seja bastante dura e real. Por outro lado, existe a facilidade de acesso, pois o carro pode ser deixado a 10 minutos das paredes.

Seja como for, ambientes de pedreira não são, de fato, dos mais convidativos para uma escalada descontraída. De certa forma a escalada feita nesta pedreira em particular tem servido, para mim, para manter os sentidos alertas. A aderência é precária e predominam mesmo as regletes, fissuras e pequenos tetos, o que faz com que escalar ali seja ótimo, mesmo assim é necessário adotar uma série de precauções e cuidados adicionais.

O primeiro e mais evidente é o uso do capacete, completamente obrigatório. Como escalo ali sempre em solitário, preferi, também por razões de segurança, adotar a escalada com corda de cima, neste caso para evitar desmoronamento de pedras sobre mim. Aliás, a grande quantidade de pedras soltas é um problema corriqueiro por ali, particularmente se tento uma linha nova. O procedimento padrão, nestes casos, é fazer o rapel com a corda solta dentro da mochila (é preferível uma corda estática) e ir soltando, sem dó nem piedade, todas as pedras possíveis de cair, o que geralmente causa uma sensação desagradável. Ao mesmo tempo em que desço, tento imaginar uma linha de ascensão, tarefa que nem sempre é bem sucedida, o que significa mais um punhadinho de pedras soltas durante a subida, pois nem sempre a linha imaginada coincide com a linha que efetivamente acontece no final. De qualquer modo nas dezenas de vezes que estive escalando neste local posso relatar, que, apesar do aspecto agressivo e pouco convidativo deste setor de escalada e mesmo do perigo latente, nenhum acidente aconteceu comigo, ou mesmo algum incidente digno de nota.

As ancoragens devem ser feitas em árvores, laçando pedras ou eventualmente com alguma peça em móvel. Em função da verticalidade da rocha, não existem escaladas fáceis, muito embora, pela minha própria limitação como escalador, afinal já tenho 46 de idade, não tive a oportunidade de explorar os graus altíssimos que hoje freqüentam os setores esportivos. Então as vias deste setor tem graduação de 6o a 8o, com linhas que vão de 35 a 50 metros de comprimento.

Muito embora eu tenha me abstido de dar nome a todas as cercas de 30 vias que explorei, a algumas não pude resistir, pois as linhas são muito evidentes. O microsetor dos Anões deve dar umas 7 vias, todas com crux em pequenos tetos. O belíssimo diedro da Cinderela é bem evidente da base da parede. É uma via exigente, com uma das paredes do diedro negativa, que parece que vai cair sobre você. Branca de Neve é um microsetor em placas, com regletes quase no limite da imaginação e da flutuação.

De qualquer lugar que se olhe, chama a atenção a existência de um teto ressaltado na pedreira. Este teto possui duas vias possíveis: o diedro do Papai Noel e a fissura da Adolescente Tapada. Embora chame mais a atenção pela linha elegante e óbvia, o diedro do Papai Noel é fácil e sem maiores surpresas, embora bonito de fazer. Já a fissura da Adolescente Tapada, é bem complicada, inclusive para proteção. Trata-se de uma fissura negativa em curva, combinado com um possível oitavo grau em regletes. Mesmo com a corda de cima é necessário colocar duas peças móveis para evitar pêndulos assustadores sobre uma área de lacas soltas. Como o nome sugere, passar pela fissura da Adolescente Tapada pode até ser interessante, mas sair dela é um tremendo alívio. Enfim, os nomes são de fantasia, sem conecções com o mundo real.

Seguramente o Mundo da Fantasia não é um setor que virá a se transformar um em local dos mais populares para a escalada em rocha. O risco inerente a praticar este tipo de atividade em uma pedreira certamente não anima muitas pessoas. O xisto, um tipo de rocha um tanto diferente da usual (arenito, granito) e a dificuldade das escaladas, um pouco mais elevada, também não convida multidões ao local. Um setor para especialistas, eu penso, mas sempre bonito, interessante e desafiador, principalmente para os nervos…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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