Por Edson Struminski (Du Bois)
Encontrei o rio Perfeito em uma destas memoráveis caminhadas pela Serra do Mar. Uma caminhada que encheria as páginas coloridas de qualquer publicação destas de aventura ou destes sites de montanha.
Vários dias navegando em meio a um verde intocado, sem qualquer outro meio de orientação que não fosse a intuição me levando por vales e cumes de montanhas que encontrava pelo caminho. Cada noite em uma montanha diferente.
Para fazer juz ao rio Perfeito, adotei um estilo honesto com a montanha. Meus instrumentos foram os mais singelos e despojados. Um tanto de comida e de roupa, um par de luvas e de polainas para proteção, um pequeno canivete para livrar-se dos cipós e bambus. Nada de facões para abrir trilhas, mapas, bússolas, GPS, ou qualquer traquitana moderna barulhenta ou cheia de botões. Uma rede e um toldo fazendo o lugar de casa no lugar da barraca. Nada de coisas sofisticadas. Pelo menos não desta vez.
A chegada neste lugar não foi feita sem obstáculos. Grandes vales e penhascos tiveram de ser transpostos. Bambus de várias espécies tolhiam cada passo, alguns finos e resistentes como cipós, outros tão duros como madeira. Taquaras ocas quebravam-se ao menor toque e derrubavam uma água suspeita e desagradável sobre mim, outras ao contrário, eram tão resistentes que se tornavam muralhas que me obrigavam a longos e incertos desvios. Apareceram ainda alguns terríveis bambus cobertos de sílica que, cortantes como vidro, deixaram marcas por longo tempo no meu rosto. Era como ele me segurassem e dissessem, “volte, vá embora”. Nas encostas mais abruptas surgiram bambuzinhos pendurados em lugares inacreditáveis e assustadores e as caratuvas dominavam o topo das montanhas.
Haviam ainda árvores retorcidas, muito velhas, cheias de barbas de bode, algumas incrivelmente fortes, outras se desmanchando ao menor toque. Também cruzei com samambaias enormes, cheias de espinhos e ainda com bromélias tão grandes que poderiam engolir uma pessoa. Cada uma delas com folhas inacreditavelmente fortes e cortantes como espadas. Um batalhão delas postado invariavelmente em cada encosta, como um pelotão a proteger a entrada das montanhas. Cada uma parecendo esconder aquela assustadora cobra que finalmente se sentiria indignada por ter sido incomodada por mim e se vingaria da minha intromissão. Uma caminhada tão difícil que, se eu, mesmo assim, quissesse voltar, fugir, encontraria na retaguarda uma vegetação baixa e intrincada que apenas permitia a passagem à custa de muito esforço. “Porque eu fui me meter aqui”, ficava me perguntando.
É bem verdade e muitos sabem disso, que eu me sinto muito à vontade neste tipo de terreno. Mas não naquele momento. Eu me sentia oprimido, frágil, sozinho.
O que eu parecia ver era uma luta sem treguas. Um caos de vegetação sufocante disputando cada espaço de luz, cada centímetro de solo, cada gota de água caída do céu. Plantas lutando pela vida, plantas perdendo esta luta. Um caos de vida e de morte ao mesmo tempo. E eu lutando contra aquele caos o tempo todo, sem tréguas. Lutando contra as plantas, lutando contra mim mesmo.
Mas foi em meio a tudo isto, a todo este caos, a toda esta caminhada tão opressora, que me veio a surpresa do rio Perfeito.
Um lugar onde o tempo parecia haver parado. Uma estranha cápsula do tempo.
Um lugar que parecia fora do espaço, parecia um outro mundo, parecia que eu havia chegado a outro mundo. Como se fosse um estranho jardim budista mantido por algum monge invisível.
Não era um rio encachoeirado com pedras polidas e com aquela incrível quantidade de movimento como são geralmente os rios da nossa serra. Ali estranhamente a calma era a regra. Tudo era verde e tranquilo. Nada parecia fora do lugar. As pedras cobertas por um musgo espesso, um tapete vegetal que parecia velho como o tempo, aparentando a regência de uma profunda ordem ainda não perturbada.
Nas margens do rio Perfeito, no lugar da areia branca, ou dos sufocantes bambus, vicejava imperturbavelmente também uma delicada vegetação. Por cima uma exuberante floresta tropical escondia este cenário deslumbrante. Apenas a água, límpida e cristalina aparentava movimento, mas um movimento tão delicado que apenas reforçava a calma do lugar.
Existem muitos rios maravilhosos na Serra do Mar, mas para mim, este me pareceu um rio especial porque ali tudo parecia em seu lugar desde que a vegetação tomou conta daquele vale há uns 50 mil anos atrás, ou será, desde que o mundo é mundo?
Cada musgo cedendo lugar a outro musgo, uma samambaia morrendo e outra surgindo, árvores sucedendo a outras árvores. Uma troca constante para uma estabilidade permanente. As pedras tranquilas. Nada de movimentos bruscos ou de agressividade. Era como se aquelas pedras, aquele musgo, aquelas plantas estivessem assistindo nossos erros e acertos nos últimos milhares de anos e nos dissessem: “vejam, ainda estamos aqui”.
Haveria muito para dizer a respeito do rio Perfeito, mas isto não caberia em poucas linhas, pois as misteriosas sensações que ele me provocou são mais para serem vividas que lidas. Apenas pedi licença para entrar e, ao final, agradeci e saí.
Permaneci nele um tempo que me pareceu longo, mas que depois me pareceu apenas uma curta permanência. De qualquer modo me pareceu um tempo definitivo, como quando a gente escuta com atenção um solo de piano pela primeira vez, de um destes compositores definitivos como Chopin ou Beethoven. Na verdade devo ter perdido um pouco a noção do tempo.
Com isto prossegui minha caminhada. Mais vales e montanhas, mais bambus, samambaias e bromélias. Mas eu já era uma pessoa diferente. Depois desta estranha aventura, mais do que a água límpida para beber no caminho, levei um pouco da calma do rio Perfeito para beber na minha vida. Onde terá ficado o rio Perfeito? Será que ele só existiu na minha desesperada imaginação porque eu precisava dele naquele momento? Terá sido uma alucinação, em meio a uma dura jornada ou apenas uma metáfora de quanto a calma é importante em nossas vidas? Será que o rio Perfeito realmente existe?
Depois de alguns dias caminhando pelas montanhas atingi meu objetivo final, apenas para perceber que meu objetivo real, na verdade, tinha sido caminhar por aquelas montanhas, passar por aquele rio Perfeito.