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Archive for fevereiro \18\+00:00 2010

Impressões de Cochamo – 2

Por Edson Struminski (Du Bois)

Parte 2: razão

O caminho que leva até Cochamo nada mais é que um antigo “passo” entre Chile e Argentina, usado no século XIX para transporte de gado e invernada, estratégico por andar ao lado do rio Cochamo, que em alguns pontos forma um desfiladeiro. No século XX um trajeto mais viável para veículos foi construído, ligando as cidades de Bariloche (Argentina) e Osorno (Chile), através do passo Cardenal.

Como Cochamo não tem aquela evidência de lugares vizinhos bem conhecidos, como as agulhas de Cerro Catedral, ou os nevados Osorno e Tronador, ele foi descoberto pelo turismo há, talvez, não mais que doze anos. Chiquinho, meu vizinho aqui do Anhangava, comenta que um estudioso inglês estava fazendo uma pesquisa no sul do Chile e falou com um amigo escalador sobre um lugar que parecia um vale do Yosemite, com montanhas com paredes imensas…

Ainda segundo o relato do próprio Chiquinho, mais do que internet, as informações sobre Cochamo foram transmitidas de boca e ele teria participado de um dos primeiros grupos a acessar o lugar, ainda sem nenhuma estrutura de apoio ou mesmo trilhas aos principais pontos de interesse. Um lugar selvagem em um sentido mais amplo, conforme podemos ler em um artigo de Sergio Tartari (1).

O turismo rapidamente instalou toda uma rede ligada a prestação de serviços no local, como o comércio de alimentos, pousadas, refúgios, campings, transporte com veículos e, também, o que é mais notável, reativou o antigo e tradicional transporte através de cavalos. Durante a temporada de escalada (primavera/verão), estas atividades dão sobrevida ao povoado de Cochamo (um pequeno porto do Pacífico com menos de 5 mil habitantes), ainda que algumas destas atividades estejam sendo realizadas por estrangeiros e não por chilenos.

Contudo, se o que você busca neste lugar é esta percepção de selvagem de que falei, deve guardá-la para o segundo ou terceiro dia no lugar. O primeiro dia será dedicado a andar no antigo caminho de tropas, onde você terá que conviver com pastagens e áreas desmatadas recentemente, valetões que chegam até 2,5 m de profundidade, por onde passam os cavalos, barrancos instáveis, pântanos ocasionados pela falta de drenagem, pedras soltas e lama, muita lama misturada a dejetos de animais, o que torna duvidosa até mesmo a prosaica tarefa de coletar água para beber. Tudo isto formando trilhas paralelas (vários valetões, vários pântanos) que eu estimei como tendo de 10 a 30 m de largura, o que torna a trilha um labirinto desconfortável e tenso. Apesar do trajeto ser relativamente plano, gastam-se até 2 horas a mais no desgastante sobe e desce e desvio de obstáculos, quando se anda, como eu, com a mochila cargueira.

Como alternativa a andar com a mochila enorme nestes labirintos, muitas pessoas, em particular os escaladores, contratam cavalos para transportar os equipamentos. Também vi pessoas (jovens na maioria) subindo a trilha a cavalo. Isto realimenta, amplia e agrava os processos erosivos ou degradantes em um círculo vicioso que fará com que o trajeto se torne cada vez mais degradado e dependente do cavalo. As manutenções que são feitas também são insatisfatórias ambientalmente: construção de passarelas com enormes toras ou placas de madeira sobre os pântanos. Elas não resolvem os problemas de drenagem ou instabilidade desta trilha e consomem madeira de ótima qualidade, mas reduzem a formação da lama e a erosão em alguns pontos.

Atualmente é possível chegar até a Argentina através de uma caminhada que dura quatro dias margeando o rio Cochamo. De cima das montanhas é possível acompanhar este trajeto, sendo o único impacto visível humano na região. São áreas desmatadas para pastagens e usadas também para acampar. Nestas áreas é possível encontrar grande quantidade de lixo deixado pelos visitantes, corte de vegetação e fogueiras abandonadas.

Como as áreas em volta do rio Cochamo são planas e com clima mais ameno, são procuradas por pessoas que querem pescar ou banhos de rio. Existem pousadas como o Refúgio Cochamo com informações sobre as vias de escalada e campings privados (todos pagos) embora exista a possibilidade de camping selvagem.

Os turistas são basicamente americanos atrás do “selvagem”, cowboys de Montana com seus chapelões que vem pescar com suas roupas de borracha, tendo ao fundo uma paisagem de montanhas com rochas e gelo digna daqueles filmes da seção da tarde. Uma segunda tribo é a dos northfaceanos. Escaladores atraídos pela novidade do mundão de pedra para escalar. Com isto, o inglês é a segunda, senão a primeira, língua do local. Na trilha das cachoeiras, por exemplo, um quiosque recém-construído para os turistas tem um educado aviso que felicita os visitantes pela sua presença frente a uma maravilhosa cachoeira e os convida para degustar uma reconfortante caneca de chá. Tudo em inglês sem tradução para o espanhol.

Este fato, que provocaria indignação em algum sulamericano mais nacionalista, ou que seria usado pelos marxistas dos anos 1970 como símbolo de colonialismo, me parece apenas sinônimo de um certo pragmatismo dos chilenos em relação ao que o turismo pode trazer ao país. Se mais brasileiros começarem a ir ao Chile do que norte-americanos, provavelmente chegará um momento em que os chilenos começarão a arranhar o português, assim como se viram com o inglês e aceitam dólares. Em Buenos Aires, por exemplo, o Real é uma moeda aceita nas lojas. As pessoas são gentis com quem paga a conta…

 O mundo sem regras dos escaladores

Com aquele afoiteza digna de quem chega a lugares que estão sendo abertos pela primeira vez, os northfaceanos estão acessando estas montanhas sem muito critério, abrindo trilhas e clareiras para acampamentos descuidadas, deixando lixo e dejetos por onde passam. Um lugar “sem regras”, como comentou uma amiga minha inglesa (que visitou o local) sobre o que circula na internet internacionalmente sobre o lugar. Apenas na base do Trinidad, foi possível encontrar, após a passagem de dois grupinhos, coisas como sacolas plásticas, uma embalagem de óleo, uma garrafa de vinho de vidro, uma frigideira enorme, absorvente feminino, papel higiênico na beira do rio, tickets do Campo 4 (Yosemit), lixo escaladorístico (cordas, fitas) e pedaços diversos das famosas barraquinhas, entre outras coisas.

As trilhas que os escaladores tem feito para acessar os lugares são tão ruins que em pouco tempo já se fez necessária a instalação de cordas fixas para apoio em alguns pontos íngremes e lamacentos. Cordas fixas também aparecem em desfiladeiros e abandonadas em paredes de escalada. As paradas e linhas de rapel ainda usam grampos de fenda ou chapas, obrigando a instalação de fitas ou cordeletes, que evitam o atrito da corda com o metal mas ficam apodrecendo nas paredes e tornam-se um risco para os escaladores.

Na trilha de acesso ao Trinidad o problema é a lama e a declividade, particularmente em áreas que sofreram com um incêndio recente. Durante a atividade de resgate de meu colega de escalada, fui obrigado a instalar apoios com galhos e troncos atravessados na trilha, para evitar quedas com a mochila pesada. Depois isto se tornou um hábito. Em qualquer trilha que eu andava, algumas abertas à base da motoserra, como a deprimente trilha para as Paredes Secas (setor desportivo) fui instalando estes apoios preventivos, ação simples e de efeito bastante benéfico. Para o Cerro Arco-Íris, uma longa e bela caminhada, por exemplo, a trilha é tão instável que vem desmoronando, sendo totalmente previsível a necessidade de desvios e a instalação de uma via ferrata daqui a pouco tempo, no lugar das cordas fixas e chapas já colocadas.

Comentei com o pessoal do refúgio sobre estas questões e eles me responderam que em fevereiro eles estariam promovendo um mutirão para recuperação de alguns trechos. De fato, as madeiras existentes no local são de boa qualidade e o esforço necessário para introduzir melhorias não é grande, como eu próprio constatei. Os próprios brasileiros que passaram pelo lugar (Chiquinho, Tomi, Flora), construíram alguns degraus bastante sólidos em pequenos trechos da trilha do Trinidad.

Entretanto, também vi gente abrindo trilhas novas na região, que ainda é bastante selvagem. Tudo sem muito cuidado, como, aliás, ainda acontece em menor grau no Brasil, o que só vai ampliar os problemas futuros. Na verdade um diagnóstico geral da situação e alguns critérios já se fazem necessários em Cochamo, de modo que a prática do montanhismo na região se torne uma atividade sustentável e não destrutiva como é hoje.

Todas estas coisas se diluem na paisagem deslumbrante e grandiosa do lugar. A região tem realmente potencial para milhares de vias, em vários estilos, preferentemente em móvel, além de travessias, escaladas em gelo, caminhadas, enfim, para várias atividades de montanhismo, daí o frenesi dos escaladores.

Cochamo não faz parte de nenhum parque nacional chileno. Entretanto, este país que já tem mais de 20 % da sua área convertida para unidades de conservação, já possui, a meu ver, motivos de sobra para dar lições sobre conservação da natureza. Com isto, é bastante provável que a conservação desta região tenha que depender da união entre proprietários, um tipo de costura que terá de incluir e harmonizar interesses dos mais diversos, até conflitantes, de exploração da madeira ao camping, do transporte com cavalos à manutenção de trilhas. A outra opção é virar mais um parque nacional.

Apesar destes impactos pontuais, o turismo vem se contrapondo a outras formas de exploração do local que seriam mais impactantes, como a exploração florestal, que já havia avançado por áreas mais baixas do rio Cochamo, ou a um projeto de construção de uma hidroelétrica, que iria inundar parte do rio e desfigurar a região.

O desafio a que a exploração turística de Cochamo se impôs é tornar-se, como comentei, sustentável, desafio este que nós como montanhistas fazemos parte, pois somos responsáveis diretos pelo bom ou mal uso do local.

 (1)  Mucho Granito Arriba. Sergio Tartari. Revista Headwall, jan/fev, 2003.

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Impressões de Cochamo

Por Edson Struminski (Du Bois)

Parte 1: emoção

“Rutilante”, esta palavra pouco usual em português e, para mim nova em espanhol e que eu ouvi no sonoro sotaque chileno, era a que melhor definia a impressão que eu tinha do cume do Trinidad Norte, visto de cima de uma montanha vizinha, o Elefante, de onde eu estava naquele instante. “Rutilantes” eram também o distante Cerro Tronador, já na Argentina e o vulcão Osorno, cartão postal do sul do Chile. “Rutilantes” eram as montanhas nevadas em volta, o deslumbrante vale suspenso de La Paloma, verde até uma certa altura, sendo que deste verde, do nada, subia um rio em uma inacreditável rampa de pedra até um glaciar, com linguas de gelo que se sustentavam nas enormes paredes das montanhas nevadas vizinhas. Parecia um cenário de sonho, de filme.

“Rutilantes”…

Mas nem tudo era assim tão sonho, tão cinematográfico, tão “rutilante”, neste pedaço da Patagônia. Dias atrás, em uma das raras janelas de bom tempo, um dos meus colegas de viagem tinha se acidentado, derrubou uma pedra sobre si mesmo durante um passeio tranquilo que fazíamos junto com a namorada dele em um “acarreo” no Trinidad sul e este acidente inesperado e chocante me levaria a estar sozinho na montanha dali em diante.

Então tudo o que eu tinha visto até então me faria pensar: o mau humor do clima patagônico, as paredes enormes, a aderência precária do granito alisado pelo gelo e pelo vento, as agarras e fendas marotas, as trilhas horríveis, geralmente despencando, o terreno instável, enfim, pensei em todo o desconforto e insegurança que o lugar transmitia e imaginei se não seria mais cômodo e seguro para mim simplesmente voltar para o Brasil junto com este colega, mas acabei ficando.

Acabei ficando porque se havia o cansaço depois de dias desmontando o acampamento deles e porteando para baixo, se havia o medo de também me acidentar e não ter a quem recorrer, se havia ainda o desconforto causado pelo frio, pela chuva e pelo granizo, havia também a promessa de um cume “rutilante”, de talvez chegar naquele vale suspenso que parecia um Shangrilá, um cartão postal ao vivo. Haviam os estonteantes rios de água verde esmeralda e as cachoeiras de tirar o fôlego para ver. Haviam os alerces gigantes, as flores minúsculas e as esculturas de gelo para tocar, a chance de passear um pouco na neve.

Acabei ficando em Cochamo sobretudo porque percebi que seria um excelente lugar para aperfeiçoar meu instinto, minha capacidade de interação com uma montanha e com uma floresta tão diferentes das que eu estava acostumado, de testar se o que eu sabia de montanhismo servia, afinal, para alguma coisa.

Fiquei porque percebi que poderia aprender com os detalhes e que eles fazem a diferença em lugares como aquele. A temperatura do meu corpo, a vibração dos meus passos, poderiam fazer com que pedras se movessem dentro do estreito desfiladeiro onde andava, onde o que existe são só pedras soltas e blocos de gelo suspensos. Então nada de ficar saltitando, nada de brincar com o perigo, nada de fazer de conta que eu era montanhista como as pessoas às vezes fazem na internet. Talvez, já tinha percebido, simplesmente não voltasse vivo.

Descobri que eu podia, sim, montar meu bivaque em lugares onde seria menos afetado pela chuva e pelo vento, descobri truques para me manter seco, dormir seco, usei os velhos conhecimentos para achar madeira seca no meio da chuva desmoralizante quando o fogareiro falhou. Descobri logo as melhores madeiras para isto e com isto meu moral subia. Aprendi a olhar as nuvens para sentir a mudança no clima, a usar o tempo a meu favor (o sol se põe às 9:30 da noite nesta época do ano nesta latitude). Comecei a ficar alerta. A água do rio estava a 2oC., o degelo transformava o rio em corredeiras de tarde. Não se pode derrubar a bota em um rio destes. Eu não passava sobre o gelo e depois entrava em aderências de rocha sem deixar a sola do calçado secar, não eram lugares para se brincar de aventureiro ou ser vacilão. De que me valeria contar a vocês: “puxa estava a 3 mil quilômetros de casa, pisei em uma pedra com a bota molhada e caí, que azar, não?”. De que me valeria tentar fazer mais do que eu podia, subestimar a montanha, me machucar e depois dizer: “estava em um lugar sem segurança e me machuquei”. Todos os lugares são inseguros ali, mas minha atitude não precisava ser insegura.

Com isto reaprendi uma destas lições de vida tão essenciais que vem do montanhismo: que se andasse leve, com a cabeça leve, centrado, com calma e paciência e só com o essencial, poderia chegar longe e alto…

Assim, aos poucos, Cochamo abriu suas portas para mim. Além do cume do Elefante, cheguei a outro cume deslumbrante: Cerro Arco Íris, apenas para descobrir que estava no começo de uma cadeia de cumes nevados, com despenhadeiros de tirar o fôlego e filos rochosos a se perder de vista. Caminhada e escalada se misturando. Tudo muito belo e assustador ao mesmo tempo, junto com a estranha sensação de em uma mirada ver um país inteiro: a oeste um braço do Pacífico, a leste as montanhas argentinas.

Experimentei as aderências do Cerro Gorila. Visitei o belo e esquecido caminho (trilha fechada) do vale do rio La Junta, fiz o circuito das cachoeiras, com impressionantes quedas d´água e cheguei ainda a um outro lugar que chamei de “nido de condores”, uma torre em uma das montanhas da região onde achei uma pena desta ave extraordinária, após algumas horas andando em uma encosta sem trilhas, porque queria saber, mesmo por um curto espaço de tempo, como era andar fora das trilhas, sem abrir trilhas, neste lugar.

Também, como quem não quer nada, após andar em uma trilha sem maiores indicações, acabei tropeçando no vale de La Paloma, o tal Shangrilá suspenso em meio a paredões, neveros e estrondo de cachoeiras.

Como descrever um lugar destes, mesmo em fotos? A perigosíssima caminhada/escalada nas rampas de aderência do rio, o frio da massa de gelo do lugar, o barulho da água de degelo despencando dos cumes, a brutalidade das rochas e a sensação de acolhida que um pequeno bosquete de alerces transmitia. A espantosa e efêmera delicadeza das flores andinas em meio ao caos de um mundo mineral em constante movimento.

Com isto, vejo que cada vez que eu entro em um lugar destes, não é do mundo comum que eu me afasto, é justamente do mundo do montanhismo, disto que hoje se convencionou chamar mundo do montanhismo: páginas de internet, blogs, listas de discussão, muitas vezes feitas de vazios, inconsistências e mentiras… É disto que eu tenho passado longe ultimamente, pois cada vez  menos retrata o que eu vejo em lugares como Cochamo. Com isto é a cada vez menos pessoas que eu posso mostrar as fotos que eu fiz, que podem entender o significado de andar em lugares onde andei. Porque nada do que eu fiz representa um troféu. Não trouxe troféus de Cochamo, apenas mais uma vivência para repartir com as pessoas queridas.

Assim, depois de todo o frio, de todo o medo, foi já reconciliado e adaptado a aquele lugar, com pesar, que eu fiz a última refeição em Cochamo, pensando no longo caminho que me levaria da cidade de Puerto Montt até minha casinha no Anhangava. Sentei na beira da impressionante cachoeira do rio La Junta pela última vez, olhei para os paredões espetaculares do Trinidad pela última vez. Meu estado de espírito tinha mudado. Quisera agora ter mais um mês, conhecer outros lugares, andar em outras paredes, entrar em mais um ou dois vales de sonho daqueles, passear por mais um nevero.

Como definir a sensação de andar em todos estes lugares impressionantes, perigosos e de encher os olhos e a alma e sair sem nenhum aranhão?

Una sensación rutilante.

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