Por Edson Struminski (Du Bois)
A paisagem e a cultura do Rio Grande do Sul são marcadas pela presença do “pampa”, uma formação natural de suaves colinas (coxilhas) com vegetação campestre a perder de vista. De fato, o pampa (e outras áreas planas correlatas) é uma grande planície que cobre boa parte do Uruguai e entra Argentina adentro, até emendar-se com a planície patagônica. Nestas regiões ainda é possível encontrar um pouco da cultura tradicional destes tres países, como as “campanhas” (fazendas de gado), “canchas retas” (pistas de corridas de cavalo) e seu tipo humano mais característico, o “gaúcho”, que faz suas lides no campo. Tudo isto em uma paisagem ainda relativamente vazia do ponto de vista da ocupação humana, o que tem consequencias importantes para quem viaja por esta região como seria o meu caso e o de Miriam Chaudon, minha carinhosa companheira nesta viagem.
A região de Bagé, no centro sul do Estado rompe dramaticamente com este determinismo. Pelo menos com a parte geográfica. Assim como Caçapava do Sul, município vizinho, a respeito do qual já contei histórias aqui neste blog, Bagé também apresenta notáveis formações rochosas de conglomerado, rochas de base arenítica caprichosamente esculpidas pela água em meio ao pampa.
No começo dos anos 1990 a escalada em conglomerado e arenito no Rio Grande experimentou um renascimento com base na escalada livre. Acompanhei este evento por conta do contato com um excepcional escalador da época, João Giacchin, que influenciou, direta ou indiretamente, toda a escalada que ocorreria neste Estado, pelo seu estilo ousado e arrojado de escalar.
Depois dos arenitos em volta de Porto Alegre e do conglomerado em Caçapava do Sul, que cheguei a conhecer na época, Bagé entrou na rota de Giacchin que abriu algumas vias na região e explorou áreas até então inexploradas para a escalada neste vasto mundo de enormes pedras. Ele foi um pioneiro, com tudo o que isto significa em termos de esforço físico e psicológico, mas também de benefícios. Ele abriu o horizonte de Bagé aos escaladores gaúchos.
Cidade de Pedra
Juntamos algumas informações sobre o lugar disponíveis em blogs ou a partir de contatos com escaladores gaúchos, mas a grande dificuldade continuaria sendo o acesso, pois o ponto de partida dos escaladores geralmente é pelo norte, por Porto Alegre e o nosso seria pelo sudoeste, por Santana do Livramento e, como falei, o “vazio humano” e a ausência de placas indicativas poderiam facilmente nos induzir a erros na estrada.
Com isto, as grandes ferramentas que usamos nesta busca foram os “googles” da vida (earth e maps). Com eles conseguimos fuçar a região, achar referências, calcular distâncias, estimar o tempo de viagem e reduzir a margem de erro na busca da entrada certa para uma espécie de paraíso para a escalada em rocha gaúcha, chamado “Cidade de Pedra”. Contaríamos, também, é claro, de uma dose de sorte e bom senso.
Começamos a viagem com alguns quilos extras de água no carro por conta da extrema seca que o sul do Rio Grande sofria no início de 2012. A água iria servir para tudo: cozinhar, beber, lavar as coisas, banhos de gato. O tal paraíso para a escalada tinha este grande inconveniente: os rios estavam secos e a pouca água existente era disputadíssima (e contaminada) pelo gado, não servindo nem para escovar os dentes.
Após algumas horas de incertezas por estradas de asfalto, apareceram pedras no horizonte monótono do pampa. Apostamos em uma entrada. Seguimos 10 km de chão batido e encontramos um lugar que correspondia à descrição de play ground dos escaladores desportivos gaúchos: pedras enormes com negativos, caminhadas fáceis, sombra, chapeletas, grampos. Havia pouco lixo, que tratamos de recolher e a vegetação mostrava um predomínio de árvores não muito altas, com um capim ou quando muito, um pasto baixo que curiosamente pareceu aparado sempre à mesma altura (mais tarde descobriríamos que era isto mesmo). Armamos nossa barraquinha e não veríamos vivalma nos próximos dias que seriam dedicados às caminhadas e escaladas neste pequeno recanto do sul do Rio Grande.
Como comentei, com alguns minutos de caminhada fácil a partir do campo-base já era possível começar a ver as diferentes vias que estão disponíveis para os escaladores. Vias fortes, negativas e aéreas, que tem sido responsáveis por colocar o Estado no mapa da escalada desportiva brasileira. Mais alguns minutos e topamos com vias mais tradicionais e acessíveis. Dos cumes das pedras foi possível descobrir a razão de tanta facilidade nas caminhadas. Toda a região, inclusive embaixo das árvores, é um imenso pasto para o gado bovino e principalmente para as cabras, que perambulam em todos os cantos, comendo tudo que alcançam. Por outro lado, demonstram, um desempenho invejável nas pedras.
A paisagem, tanto dos cumes, quanto das paredes ou das caminhadas é mesmo o principal atrativo da região. A cada 5 m algo novo aparece e surpresas podem ser encontradas nas rochas moldadas pelo tempo.
Tantos espaços abertos e convidativos podem nos induzir ao erro durante as caminhadas, então acabo adotando uma marcação “ecológica” dos caminhos, com totens de pedra ou setas de galhos quando aparece algum trajeto mais longo. Estas marcações naturais, que fazia na ida e desfazia na volta acabam sendo essenciais para agilizar as caminhadas embaixo do sol calorento que não deu tréguas.
Apesar das cabras e das vacas, o lugar é surpreendentemente bem povoado por animais silvestres: mamíferos, aves, repteis, que avistamos tanto de dia quanto de noite, além é claro, dos marimbondos, muitos deles, interditando vias ou pedras inteiras. É quase inevitável algum encontro com estes bichos, que nos proporcionam a grata oportunidade de experimentar o uso terapêutico do seu veneno para combater a artrite (pelo menos é o que eu ouvi falar).
Após alguns dias maravilhosos, uma surpresa adicional nos aguarda na volta: o carrinho enguiça na deserta estrada para Santana do Livramento, mas o que é um grande azar, em um primeiro momento, acaba se revertendo em sucessões de lances de sorte e tudo é resolvido de maneira surpreendentemente rápida. Acabamos passando horas agradáveis na noite da simpática cidade de Dom Pedrito, que está tomando feição de cidade universitária por conta de um campus da Unipampa.
Cerro Palomas
Miriam me levou para passear na bela zona rural vinícola de Livramento e também em andanças em Rivera (Uruguai), onde já é possível encontrar alguns equipos de caminhada e montanha de marcas que ainda não estão disponíveis no Brasil.
No Cerro Palomas, que virou também uma espécie de play-ground em basalto nestas passagens minhas pelo sul do nosso país (ver https://blogdodubois.wordpress.com/2011/09/21/fronteira-sul-o-ultimo-setor-de-escalada-do-brasil/), aproveitamos para fazer 360 graus de caminhada pela base das paredes (o morro, em forma de meseta é redondo). Encerro minha estada no sul do país abrindo mais algumas linhas, belas e difíceis linhas por sinal, em chaminé, oposição, teto, parede, diedro, nas paredes basaltianas, com pedras soltas do tamanho de um forno de microondas, ou maiores ainda, suficientes para achatar qualquer vaca que ande embaixo delas. E assim segue minhas andanças nas paredes do sul do país.
Quanto é grato encontrar Blogueiros como tu; sábios escritores que quando escrevem, realizam verdadeiras obras eruditas. Obrigado, meu irmão espiritual, pela parte que me toca (no teu texto recém lido). Sim, foi um prazer praticamente inefável escalar no Rio Grande do Sul no final dos anos 80, e nos 90; aprazível época que enriqueceu meu bem estar (mesmo que o que eu tenha feito seja considerado Pioneirismo da Escalada em Rocha, para mim, a escalada foi razão de tornar a vida mais significativa, mais bela; quem sabe isso ajuda a entender o termo Pioneiro). Obrigado querido amigo Du Bois (teu relato de viagem, Bagélança, me encheu de saudades). Vou te visitar! Um abraço desde Londres (estou aquí, escalando e aprendendo o meu quinto idioma). Sigo tomando à vida mais significativa, sigo tornando o camino mais belo.